sábado, 11 de agosto de 2012

Pergaminho II ~ Arturo e a Harpa.

Nessas linhas que escrevo sem muito propósito haverá sempre alguma busca lacônica pelo sabor da culpa. A culpa, entre todas as coisas do mundo, é a que mais liberta. E liberta de uma forma punitiva que, imagino eu, todos os seres humanos buscam, de uma forma ou de outra. Pra liberdade realmente germinar, criar raízes, precisa-se de um solo cicatrizado. O machucado faz a cura, e a culpa semeia o prazer da punição e nos coloca de volta em pé.

Eu ainda estou de joelhos.

O fato é que, subindo as escadas em direção ao grande portão que introduzia ao castelo, a presença de Will a dois passos de distância era algo indefinível, entre o susto e o cárcere. Minha respiração – já normalmente ofegante – titubeava até o abismo do soluço. Não que a figura do menino me irritasse ou que fosse desagradável: ele acompanhava a boquiaberta fila indiana com uma serenidade tão díspar que parecia já conhecer Hogwarts como se fosse a sua própria casa, soltando vagos sorrisos de alegria comedida em minha direção, em intervalos de tempo minuciosamente concebidos. Ainda assim, meu peito se contraía em dor, como se quisesse buscar palavras ainda não inventadas para se proferir em gritos afônicos. Seria assim tão aterrorizante qualquer amizade que eu porventura fizesse? O convite para uma relação harmônica e gratuita já nos primeiros segundos da vida acadêmica bruxa me pareceu deveras suspeitável. Fui uma criança acostumada a receber coisas em troca de outras. “Se você quer sair hoje à noite conosco, Liz, termine de ler esse livro.” “Esses presentes de aniversário você ganhou porque foi uma boa menina. Não me decepcione nesse próximo ano, hein?” “Enviarei você a Hogwarts porque preciso que se torne uma grande bruxa um dia, minha filha...”. No meu imaginário ainda infantil eu seria capaz de esquecer a voz de Relius, mas às vezes eu suspeitava que a voz do meu pensamento fosse a voz do meu pai, crua e simples. Olhei para Willhelm de soslaio, com a vergonhosa suspeita que ele talvez fosse um espião me vigiando, e consegui sentir um quase-ódio do garoto. Também me imaginava desmascarando-o aos berros, ali naqueles degraus, como quem enfrenta o seu último algoz. Os olhos marejados em lágrimas eram fáceis de se notar, e ele notou.

– Ei Liz, veja!

Meus devaneios foram logo ceifados pela imagem de vários alunos gargalhando de uma silhueta difícil de compreender. De alguma forma os seus fios de cabelo viajavam pelas mais diversas tonalidades de cor, ora no bestificante vermelho-fogo, ora num branco plácido como a neve noturna. Algumas cores eu não sabia sequer nomear. Eu não consegui, naquele momento, identificar se a sua feição estava constrangida com a situação ou se a causara propositalmente, mas a forma como ele afundava seu rosto nas mãos em concha e balançava a cabeça em negação tirou a minha dúvida rapidamente. O fenômeno, apesar de visualmente interessante, não me chocou. Uma pequena repulsa foi o que senti lá no fundo da garganta, repulsa pelos alunos zombeteiros. Não que eu estivesse dominada por um desejo heroico de defender o rapaz, porém aquele escárnio todo poderia e provavelmente seria em algum momento voltado para mim, para os meus cabelos estranhamente espiralados ou para minha pele de cera e a bochecha gorda. Eu não queria ser notada e, por mais que meu coração sinceramente se compadecesse da algazarra toda que vitimava o pequeno bruxo colorido, qualquer singela aproximação destruiria minha intenção ao anonimato. Willhelm, sem nenhum tipo de preocupação mesquinha e sem delongas, aproximou-se dele, falando qualquer coisa que não pude ouvir enquanto o espalmava amigavelmente no ombro, recebendo um lúgubre sorriso de meio-lábio em resposta. Uma pedra seca tamborilou no meu estômago: eu estava sentindo uma espécie arcaica de ciúmes, mas não sabia naquele momento que se tratava disso. Costumeiramente, quando um sentimento novo surge, deixei banhar-me em raiva para que a outra sensação se esconda e uma nova e facilmente nomeável tome seu lugar. Cerrei os punhos e deixei que as unhas escarlates arranhassem o pulso, transformando a dor interna numa dor externa e expurgável. Não negaria em nenhum momento da minha vida que sou uma pessoa contraditória, porque eu sou – e demorei muito para entender e aceitar – o encontro dos opostos, uma contradição com pernas, braços e uma face de lua cheia.

Mas a dor logo foi vaporizada quando aquelas notas musicais adentraram pelos meus ouvidos, como imensas cachoeiras quentes, reconfortantes. Eu não era capaz de precisar a distância da qual a fonte daquele som estava, já que parecia retumbar diretamente dentro do meu crânio e ecoar em todas as suas quinas. Basta apenas lembrar-se da melodia, no abismo de um silêncio como esse em que me encontro agora, para que eu reconstrua aquela sensação, a de se afogar num oceano de harmonia. Entre todos os alunos não havia um com os lábios colados, até mesmo a rima da boca entreaberta surgia como uma porta de entrada para aquela belíssima canção. Era melancólica, mas não triste. Era como um toque sereno de compreensão sobre as verdades do mundo e preocupação com as dores de todos. Lenta, mas forte. Até mesmo meus ossos pareciam arrepiados, juntamente aos músculos retesados. Quis chorar, mas as lágrimas não vieram para acompanhar as outras alunas marejando os piscares eufóricos. Ao passo que a fila prosseguia, uma imensa harpa dourada se projetou exatamente a frente do portão principal de Hogwarts. Dourada, com filetes prateados contornando as imensas asas que dormiam em sua face côncava. Suas inúmeras cordas eram quase invisíveis, podendo ser visualizadas apenas quando seu dono as dedilhava com a leveza de um suspiro. Não conseguia compreender como uma pessoa com a estatura normal poderia manusear aquele instrumento, e tão logo pensei nisso, a melodia encontrou seu fim, quando o músico finalmente se levantou e lançou um olhar globoso e compenetrado para todas as crianças que se esgueiravam para vê-lo.

– Eu dedico essa canção a todos vocês, como um cântaro de liberdade e benfazeja que deverá contornar todas as suas ações a partir do momento que entrarem por esse portão! – apenas um fio de voz, quase se dissolvendo no ar, escapulia pelos lábios crispados.

Sua pele parecia um pergaminho, quase completamente bege. Os olhos eram tão negros que era difícil separar a pupila da íris, e eram parcialmente ocultos pela enorme cabeleira também escura que lhe revolvia praticamente todo o corpo, magro e de traços obtusos. Nunca antes vi um homem com cabelos tão extensos. Deliberadamente soltos, chegavam à altura do joelho num trajeto absurdamente retilíneo. A vestimenta era tão adornada que eu não sei nomeá-la, não era o que comumente os bruxos usavam, como sobretudos escuros ou capas. Havia tecido por cima de tecido revolvendo tudo num ofuscante tom de amarelo, costurado aqui e ali por linhas vermelhas que confluíam em formas diversas como dragões, chamas e uma fênix adormecida. Cada simples movimento daquele homem revolvia camadas e camadas de pano que lufavam o ar a sua volta, talvez por isso ele parecia economizar tanto nas gesticulações.

– Eu sou Arturo PlavaLaguna, professor de adivinhação, tarólogo bruxo, mestre em runas antigas e diretor da Lufa-Lufa. Sejam muito bem vindos! – curvou-se sobre si mesmo num cumprimento saudoso que me fez corar – Todos os dias que passarem aqui, espero eu, serão marcados pela bênção da sabedoria, do conhecimento e da maturidade intelectual. A Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts passa por um delicado momento de ameaça a cultura bruxa, e depositamos imensa esperança em vocês, novos constituintes dessa família em construção.

Eu havia me esquecido completamente dos assuntos que me irritaram outrora, e naquele momento tudo que eu poderia experimentar era uma profunda ansiedade. Algo dentro de mim, que me compunha enquanto Liz desde os meus primórdios, parecia se comunicar com toda essa atmosfera mágica, simbólica e misteriosa que surgia diante de mim. De forma que meu corpo parecia ressonar, o coração trepidando em batidas fortes. Suor. Arturo, e sinto profundas saudades desse Arturo, caminhou entre nós tão lentamente que todos se petrificaram, como se ele quisesse sentir algum tipo de aura que nos circundasse. Ele olhou pra mim de uma forma reticente que eu interpretei, talvez arrogantemente, como uma singela curiosidade. Mas foi no menino metamorfose que ele deteve sua atenção.

– Seu nome?

– Noah. – ele respondeu tão rapidamente que parecia já estar preparado para o questionamento, sem exibir nenhum traço de nervosismo.

– Sobrenome?

– Não tenho, professor.

– Interessante... Vou querer conversar com você depois, suas habilidades precisam ser controladas para que não lhe causem maior constrangimento. Apesar de que, a partir de agora, qualquer tipo de zombaria infantil que acontecer em minha presença certamente será punida com pouca ou nenhuma piedade.

– Obrigado, professor. – sua secura me deixou estupefata. Lembro exatamente do meu pensamento durante aquele diálogo: se fosse comigo, minhas sílabas sairiam duplicadas e minhas pernas tremeriam ao ponto do desequilíbrio.

– Atitudes grandiosas e corajosas, entretanto... – girou no próprio eixo e agora fitava Will, sem esconder um tímido sorriso – Sempre serão devidamente recompensadas.

Entre murmurinhos randômicos de excitação e dúvidas, o grupo foi se dirigindo até a enorme harpa que, inusitadamente, abriu suas asas e voou rapsódica até a porta do salão principal, numa indômita vontade própria. Cravejou-se no retângulo de madeira como uma intrínseca, dourada e alada tatuagem. Seus fios que em outro momento foram dedilhados em uma linda sinfonia agora precipitavam entre as extremidades verticais como uma extensa renda, e ao passo que a fila adentrava o castelo agradáveis sons inundavam nosso íntimo. Encorajando-nos. O portão final era grandioso e colossal, um verdadeiro obelisco que tinha tanto o objetivo de acolher quanto de proteger o recanto bruxo. E o fazia com beleza e imponência. Nunca me esquecerei do primeiro truque de Hogwarts que felicitou meus olhos inocentes. Esses olhos agora tão cansados de se surpreender.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Pergaminho I ~ Olá, Hogwarts!

Havia qualquer coisa de triste naquela paisagem que me surpreendeu de um jeito estranho. As árvores revoltas nos próprios caules, tortuosas e distantes umas das outras, aparentavam ser as sobreviventes do mais tenebroso dilúvio que passou pela Terra. As gramíneas cresciam desarmônicas numa cor rançosa entre o marrom e o vermelho. Faltava o verde dos campos, e aquele cheiro salgado de planta crescendo. E a solidão impregnava tudo por aqui e por ali, também lá no fundo onde eu não podia enxergar. No céu, dois corvos, cúmplices dessa tragédia visual, rodopiavam com certa preguiça do vôo. O retrato que a janela do trem recortava me inundou numa melancolia que caiu como gelo e ácido no estômago vazio. Não era bem o que eu esperava como cartão postal de Hogwarts.

Mas naquele instante em que os olhos vão perdendo o objetivo, vi eu mesma num reflexo trêmulo de pouco foco. Deveras impecável nas vestes e no penteado, mas jamais alguém diria que era a mais bela silhueta feminina. Também não a segunda mais bela, ou terceira, ou quarta... Os cabelos que naquela idade eram fartamente cacheados padeciam em duas espirais acinzentadas à direita e à esquerda, contornando simetricamente o rosto irritantemente circular, para então precipitar até uma linha imaginária que passava pelo umbigo. Contudo, sem nenhum vestígio de queixo. O nariz era delicado e eu gostava de seus contornos. Meu pai dizia que a ponta lembrava um pequeno coração. Concentrando muito, talvez. Os olhos que desconstruíam a fineza de qualquer traço de qualquer pessoa: eram do mais profundo negro, a íris gorda e os cílios consideravelmente longos. Pareciam ter vida própria, espreitando tudo e fotografando tudo.

Essas memórias, hoje tão longínquas... Passam como um filme antigo na minha mente. De qualidade duvidosa. Dentro dele sou uma personagem e nada mais. Dentre as poucas coisas que me carecem, sinto falta da inocência de criança que eu carregava no olhar, a pureza esmaecida, e é justamente essa inocência que cria um abismo colossal entre a Liz que fui e essa Liz que escreve. E então só posso falar de mim por reflexos disformes, vidros ou espelhos, já que olhar fixo para o abismo dói - no escuro dele dorme tudo que perdi ao longo desses anos.

O ar rarefeito dentro da cabine me tonteava. Um torpor sonâmbulo de alma notívaga, escurecendo os arredores do campo visual. As pálpebras quase cediam à gravidade agora aparentemente mais forte, inundando a consciência com pensamentos mesmerizados do espaço morto entre a vida e o sono.

Nesses momentos onde a realidade se dissolve no mar do subjetivo, era sempre o semblante de Relius, meu pai, que se esgueirava nas divagações. Aquela feição indômita, de palavras sempre curtas e o rosto pontiagudo. Talvez já tivessem sido mais maleáveis, um dia. Pois muitas vezes me perguntei como eu, ciente da criatura redonda que eu era, podia compartilhar algum parentesco com aquele homem firme, que economizava até seus traços. Também de poucos abraços. Exalava uma expectativa silenciosa pelo meu ingresso na Escola de Magia e Bruxaria que se traduzia em suspiros inebriantes e soslaios repetidos. Sempre afundando a mão firme na cabeleira grisalha como quem desgrenha os poucos fios que lhe restam com a preocupação de um desastre iminente.

Um silvo comum de uma respiração ofegosa me fez abrir os olhos. O garoto me ofereceu um sorriso corredio.

- Oi! – lampejou num tom alto demais pros meus ouvidos recém despertos. Curvou-se minimamente como um servo porta-se diante de seu empregador.

– Olá... – respondi com demasiada secura, sentindo as têmporas flamejarem e as sobrancelhas franzirem sem meu consentimento.

Contatos com crianças da minha idade eram quase inexistentes em Waterloo, onde morei. Aqueles dentes estampados na minha direção em forma de meia lua na face retangular foram as primeiras portas para os júbilos da verdadeira infância, ainda que tardia e infelizmente curta. Lembrança ímpar nessa minha mente confusa. Enraizou forte no firmamento quebradiço. E se eram portas também foram janelas, as janelas que nunca se fecham, voltadas sempre para tudo que há de cor e vida no mundo. Janelas de amizade, essa magia forte que ninguém domina.

Mas a primeira impressão daquele menino costurou-se em mim. Eu jamais esqueci e nem me permitiria – ele era antes de tudo um pandemônio elegante. A começar pelos ébrios fios de cabelo que não seguiam a lógica alguma senão a de crescer em todas as direções como um labirinto em expansão. Não eram lisos, mas havia naquela desorganização negra e volumosa um tom masculinizante que o amadurecia acima dos onze anos que tinha. O pensamento de afundar as mãos naquele lago felpudo em busca de qualquer coisa me divertira, quase o suficiente para me fazer rir.

– Meu nome é Willhelm Hackenhard. Pode me chamar de Will. Espero que não se importe sobre eu ter sentado na mesma cabine que você. O trem está muito vazio e eu não queria ficar sozinho, estou muito ansioso!

Aquela rouquidão áspera na voz acompanhou-o durante muitos anos. Tudo o que era proferido por sua boca tinha o efeito de captar a atenção das pessoas como um fenômeno raro da natureza. Não necessariamente belo, mas diferente e para alguns até pavoroso, como trovões que iluminam campos virgens em tempestades furiosas. Os lábios tinham ângulos perfeitamente simétricos, e quando colados eis uma linha férrea cravejada na pele parda. O nariz era robusto e selvagem, e no seu terço superior duas pequenas elevações ósseas nas laterais elevavam sua imponência. O septo era perfeitamente retilíneo. Estranhamente os olhos, de um castanho comum, por vezes se comprimiam como se quisessem ser orientais, desobedecendo a qualquer padrão coerente de seus contornos.

– Claro que não! – anuí, forçando uma naturalidade que saiu mais teatral do que o planejado – Eu realmente estava me questionando onde estavam os outros alunos. Mas a curiosidade foi vencida pelo sono e eu acabei dormindo um pouquinho. Muito prazer Will, sou Liz Agnis Lanier. Ou somente Liz Lanier. Ou melhor, Liz e só – Ele me deu uma expressão risível e simpática diante do encadeamento confuso. E de novo curvou-se solenemente. Nunca soube como se livrar desse hábito. E eu tampouco.

Will tinha consigo objetos estranhos que à primeira vista não me eram nada mais que um acervo de velhacarias desconhecidas. Com a mão direita, achatada e de dedos longos, pinçava dois retângulos pretos que nada mais pareciam do que meros retângulos pretos. A esquerda girava no indicador um chapéu também preto, de aba curta e o fundo alongado, que ele observava rodopiar infinitamente acelerando e freando a órbita a seu bel prazer. Uma mola multicolorida enrolava o antebraço dessa mesma mão como uma extensa pulseira por cima do sobretudo encardido. E ele ziguezagueava o brinquedo de uma maneira automática, quase robótica. Passei alguns segundos compenetrada observando o titubear do verde que se tornava azul e padecia enfim no amarelo. Eu sempre exibia uma feição carrancuda – várias e várias dobras na testa e o nariz que se contorcia quase em espiral – quando precisava concentrar em algo, e me retesei com medo de afastá-lo. Tentando manter a candura de moça. Ao seu lado alguns livros, sem nenhum aspecto acadêmico, dormiam e resfolegavam no assento ao dissabor do trem que, agora, trepidava em demasia. As bagatelas tilintavam. Will parecia não se importar. O jovem era um caleidoscópio. Aos meus olhos, a imprevisibilidade que ele apetecia se tornou o primeiro grande fascínio, comum aos invejosos de bom coração, nesse solitário ingresso ao mundo mágico. De súbito minha patética simplicidade me envergonhou, com uma picada fria e recorrente no íntimo. Virei o rosto para a janela novamente.

Os anos se passaram, mas o fascínio pela arquitetura de Hogwarts sempre persistira. Quando criança, em que o que é grande toma proporções ainda maiores, chegava a marejar os olhos e eriçar os pêlos da nuca. Lembro que quando avistei o castelo pela primeira vez o crepúsculo forrava o céu com seu manto roxo e enviava dedos de luz pálida, ressumando em toda a sua grandeza aspergida de glória e rusticidade. As grandes torres abobadadas, de tamanhos variados e invencíveis às intempéries de sua própria existência, erguiam-se como verdadeiros obeliscos acima de planícies verdejantes e nodosas salpicadas aqui e ali por pedregulhos também seculares. Onde residia parte ímpar da história da cultura bruxa da qual agora eu faria parte. Mas havia no meu imaginário infantil uma vontade trôpega de ir além. Muitos bruxos pisaram naqueles terrenos, durante séculos e séculos. Poucos realmente se imortalizaram através da história. E eu podia sentir vibrar na garganta gritos de euforia que morreram no silêncio, caindo no precipício de um lamento suspiroso. Gritos que nada mais eram que a vontade de escrever minhas próprias linhas naqueles fascículos cheios de hecatombes e reconquistas. Não sabia eu naquele instante que eu estaria predestinada a fazê-lo desde o meu nascimento. Triste acidente.

Se soubesse, nada mais desejaria do que viver os dramas fáceis de uma menina comum.

domingo, 29 de abril de 2012

Prólogo

O homem ergueu a varinha como um guerreiro a brandir espadas. Ao elevá-la todo o anoitecer passou pelos seus olhos e aquele outrora verde das folhas agora repousava no negro pétreo do medo e do desalento. Ele exibia uma capa vermelha que adornava seus farrapos escuros e arfava como um velho cansado, arqueado sobre si mesmo. O olhar comprimido focava a mulher loira, que não cedia uma contração de temor sequer diante da figura cadavérica que a enfrentava. A treva escorria pelos troncos das árvores que espreitavam em sua aquiescência noturna e silenciosa. Mas o silêncio desvaneceu.

– Você não passa de um estorvo, Liz. Um estorvo. – sua voz era como um cântico lúgubre de morte, lento e doloroso – Seria tão mais fácil pra mim se você simplesmente morresse. Mas não é o que minha senhora quer, então... – E interrompeu a si mesmo recolhendo a cabeleira cinzenta que pendia defronte ao rosto com a mão livre e sorrindo debilmente – Estupore!

O feitiço tremeluziu na escuridão da madrugada, viajando rápido em direção à mulher cujos curtos fios de cabelo dourados dançavam em todas as direções, ao dissabor da ventania que aquela energia desprendia na floresta. Moveu-se na delicadeza de um anjo, com a feição férrea de um demônio, girando minimamente sobre o eixo do próprio corpo para vislumbrar sua própria arma de combate.

Protego! – repeliu o ataque com facilidade, fazendo-o explodir numa árvore a sua esquerda que então tombou sobre o firmamento. A primeira das mortes. A bruxa segurava a varinha como quem segura uma agulha ou uma pluma. Três dedos livres. Uma solitária gota de suor irritou o relevo das têmporas até falecer nos lábios e salgá-los. A mente vazia. O deboche se costurou na face carrancuda de Liz quando prosseguiu: – De todos os tipos de ignorância eis o pior, a ingenuidade dos fracos! Você realmente pensou que sozinho poderia me derrotar?

– Não.

Franziu as sobrancelhas ao ver a forma simples e direta em que ele anuiu em resposta. E então de súbito um sopro frio caminhou-lhe pela medula quando finalmente entendeu – não estavam realmente sozinhos. Como sombras a se rastejar tortuosamente, dois outros vultos encapuzados se moviam em pontos distantes de seus dois lados, fazendo seus olhos vagarem rápidos de um canto a outro da órbita. Curvou-se em defensiva. Podia sentir o retumbar de sua pulsação ao pé da orelha, e por alguns segundos aquele som oco e ritmado a ajudara a se concentrar. E então uma voz desconhecida ressumou na noite.

– Você deve vir conosco. – dardejou num tom pouco humano para aquela silhueta corpulenta revestida de panos. Era infantil e rouco, como o clamor de um enforcado. O outro permaneceu quieto. Podia sentir no soslaio que ambos já empunhavam suas varinhas. Fechou os olhos. E se permitiu a última respiração prolongada antes de mergulhar por completo na obscuridade da batalha. E a obscuridade veio.

Dois feitiços desconhecidos disparatavam na direção de Liz, vindos de suas laterais. Mirou o assoalho com a varinha. Ascendio! Em menos de um segundo ela se lançara ao ar e todos os seus possíveis algozes nada mais eram do que detalhes na desgrenha da floresta. Os feixes luminosos que deveriam matá-la se entrechocaram numa chuva de faíscas. O vento forçava suas pálpebras a se fecharem, mas conseguia com dificuldade mantê-las abertas. Deveria agir rápido, pois a gravidade a empurraria de volta com a mesma impetuosidade que agora voava. Sentiu a velocidade diminuir, agora no pico de sua trajetória, mas não sentia medo com as estrelas ali tão perto. A energia fluía pelo seu corpo como se pudesse ser moldada com a sua imaginação. A magia sempre fora uma extensão de seus próprios membros, de sua própria alma.

Os dedos em pinça: Bombarda Máxima. Uma rajada de energia explosiva viajou rápida até encontrar o solo e causar um tremor capaz de fragilizar as raízes milenares da Floresta Proibida. Liz, que agora caía com a leveza de uma chuva de verão, podia ver o fogo escarlate da bomba se alastrar entre as folhas, cipós e madressilvas. Não podia avistar seus inimigos, e por isso sua ofensiva os buscaria aonde fosse. Desenhou círculos, elipses e figuras geométricas randômicas com a varinha no espaço, e as chamas mesmo distantes dançavam no ritmo que a bruxa ditava, revolvendo árvores e cuspindo uma fumaça ébria para a atmosfera da meia-noite, ao passo que varria cantos e quinas, becos e montes. A poeira que se ergueu formou uma neblina densa próxima ao firmamento, que ficava cada vez maior aos seus olhos na medida em que ela se aproximava do baque iminente. Que não veio. Levicorpus! Numa fração de tempo ela já estava de pé sobre a serrapilheira inflamada, que não ousava transformar em pó nem ao menos um retalho de sua vestimenta. Aquele fogo obedecia a sua vontade, e só a ela responderia. Mas sentiu a contragosto o choque térmico da mudança brusca de temperatura, fazendo com que seus membros perdessem um pouco da sensibilidade. Não poderia esgotar as energias tão rapidamente. Devolveu ao ambiente o seu aspecto de outrora: o fogo todo desaparecera numa chuva de cinzas silenciosas.

O corpo de um homem jazia no centro de um campo queimado a alguns metros, com a face descarnada a exibir a vermelhidão dos restos de músculos. Os trapos queimados. Era o bruxo de voz rouca. Um sorriso de meio lábio, mas sem felicidade... Nem sequer soube seu nome, e agora era tão somente um cadáver. Porém, não havia tempo pra lamúrias e sofreguidão.

E de fato não havia. Quando as cordas irromperam do etéreo como verdadeiras serpentes apetecendo o bote, a única reação da bruxa foi balir um grunhido de dor. Mobilicorpus! Mas dessa vez não foi uma voz feminina que se dissolveu nos ouvidos da noite. A capa vermelha do primeiro que afrontara Liz esgueirava-se no terreno empoeirado com manchas negras e brasas ainda a crepitar. E ele gargalhava. A lua também. Filetes de sangue caminharam por punhos e tornozelos quando quatro chicotes esticaram o corpo da moça como as pontas de uma estrela. Seu confrontador não empunhava a varinha, o que a fez pensar que o outro de capuz estava atrás dela, mantendo o feitiço. Podia sentir o calor da sua presença e o respirar vacilante e gelado viajando na sua pele branca.

– Você sempre foi muito confiante sobre suas capacidades, não é mesmo, Liz? – os seus passos lentos e a postura envergada denunciavam-lhe a velhice. A do corpo, pois o espírito austero permanecia vívido, com aqueles dentes de mantícora a gotejar saliva o tempo todo – Mas é muito fácil deter todo esse fogo com um pouco de água, sabia? Sam que foi um otário, pego desprevenido. – desviou uma breve olhadela para o homem estirado ao chão e pousou novamente na mulher – Sua cara está deformada ou você está realmente sorrindo?

Liz sorria.

– A idade desintegrou seu discernimento, Arturo. A água certamente apaga o fogo, mas não desfaz a fumaça. – o sorriso demoradamente se arrefeceu numa linha dura.

– E o que pode a fumaça sozinha fazer, criança?

– A fumaça indica o perigo. Ela atrai os corajosos e afugenta os temerosos...

Foi então que um fastio de pânico trespassou os olhos do bruxo, quando uma sombra colossal planou pelo assoalho esgueirando-se por onde se insinuava a luz do luar. O homem que mantinha as linhas encarcerando sua vítima não foi capaz de notar que um urso com o triplo de sua altura e o quíntuplo de sua largura estava dois passos atrás de si, apoiado em suas duas patas de unhas envergadas. A feição carrancuda de fera provocada e um sibilo pavoroso cuspido pela bocarra entreaberta compunham sua silhueta temível. A pelugem felpuda e enegrecida ondulava uniforme ao sabor da brisa gélida. Os olhos eram como damascos cristalizados numa cripta branca. O animago cravou as presas superiores no feiticeiro e quebrou-lhe o braço que sustentava a varinha. Rodopiou-o como se tivesse a leveza de uma pluma, fazendo enfim ele zarpar e beijar algumas trepadeiras não muito próximas para então padecer atabalhoadamente, inconsciente ou morto. Simultaneamente os cordões desprenderam-se de Liz, que sentiu os pés pressionarem a terra com uma leve flexão.

– E eu soube escolher amigos corajosos. Entende agora o que a fumaça pode fazer? – murmurou, sem dirigir o olhar para Arturo.

Episkey. E seus pequenos ferimentos foram remendados como se sofressem a cura implacável do tempo. O homem a sua frente estava paralisado ao ver a mulher esticar e contrair braços e pernas com demasiada serenidade, para lhes devolver o fluxo antes comprometido. E ao lado um urso enorme que nada rugia – seu silêncio era ainda mais pavoroso.

– Amigos corajosos? – uma nova voz surge, abrindo frestas na ventania de poeira. O vestido branco parecia tão vivo, com seus tentáculos flutuantes e divergentes, quanto aqueles fios de cabelo de fogo e de brasa também cascateando em tentáculos. Flutuava às costas de Liz, vinda de qualquer lugar. Seus olhos eram da cor da morte, opacos no centro. Mas brilhantes na margem feito a luz do etéreo. Como um eclipse em noite fria vigiando todos. Levou dois dedos aos lábios e entre eles uma varinha verde pendulou silenciosa. Pintou um sorriso de desdém, desses contra um adversário patético em desvantagem absoluta – Tão idiota! Figurinha estúpida, você, Liz... Algo como uma criança débil, submersa numa felicidade ignorante e feia. Confesso que sinto inveja dessa burrice desmedida – gargalhou numa frenesia lenta e laboriosa, entrecortada por suspiros de desprezo – Seu destino te sustenta e te limita, não percebe? Você tentou se desvencilhar desse momento, e nada mais causou do que as mortes de seus próximos e o sofrimento de muitos outros. Você soube escolher amigos corajosos ou amigos condenados?

Quando um pequeno abismo se formou na boca da bruxa para entoar o feitiço derradeiro, uma sombra em obelisco engoliu os fastios de luminosidade. As gotas volumosas da saliva do urso desprendiam-se de seus caninos em torrentes de fúria, de segundo em segundo e, sem que Liz ao menos percebesse – atônita diante das palavras que ouvira – , o amigo irrompeu sobre a mulher com as garras desenhando linhas de corte, a pelugem ondulando na regência do silêncio. Quando suas patas afundavam o assoalho já escavado da Floresta Proibida, o tremor percorria não só ali, mas nos arrepios de quem via a besta sendo ventríloqua da morte, a buscar vítimas e a buscar vingança. Duas passadas bastaram para se colocar de frente para Ezra. Ela e sua varinha, retesada numa linha horizontal na altura do queixo, perpendicular a um singelo sorriso no canto da boca. E os lábios crisparam antes que a fera precipitasse suas lâminas naquele rosto de pergaminho. As últimas sílabas:

Avada Kedavra!

Um grunhido de pavor explodiu em todas as direções. Por um momento, Liz não soube dizer se fora o urso ou sua alma, num cântico de penúria. Todo aquele corpulento ser de pelos revoltos tombou. Liz não podia encarar, levantou o olhar dolorosamente seco – queria o banho, um oceano de lágrimas.

O céu era totalmente negro. A lua escondeu-se no luto.